quarta-feira, 9 de agosto de 2023

O Caminho do Clérigo

 Saudações, nobres almas!

Ao contrário do que muitos são levados a acreditar nos dias de hoje, construir um personagem não é um processo de combinar classes poderosas, acrescentar uma raça que confira bônus estratégicos a essa combinação e selecionar meia dúzia de características aleatórias de um background. Se o jogador se sente satisfeito com isso, não há problema, mas com o tempo, os “combos invencíveis” irão acabar e inevitavelmente, esse processo será cada vez mais enfadonho, até que todos gradativamente comecem a deixar o hobby por falta de interesse.

No entanto, quando criamos nossos personagens a partir de uma história, mesmo que curta, que conta como ele começou antes de ser o que é quando a campanha começa, damos um significado real a ele. E com isso, a classe/raça do personagem passa a ser definida não por fatores mecânicos, mas como forma de “dar vida” a um conceito previamente criado. Nesse contexto, entendemos que a história do personagem não começa no “nível 1”, mas muito antes disso. Quando escrevemos suas experiências antes de efetivamente ter uma classe e propósito, criamos um vínculo com esse personagem, e tudo o que se refere a ele passa a ser melhor aproveitado e divertido por muito mais tempo.

Como era o mestre mais antigo de meu grupo, eu raramente jogava, de modo que tive poucos personagens. Mas sempre que tinha a oportunidade de jogar, procurava parar um pouco para escrever uma história que explicasse como o personagem “chegou ao nível 1”, mesmo que isso parecesse supérfluo, e pedia o mesmo, em grau bem menor, a meus jogadores quando mestrava. Lembro que isso nos aproximava dos personagens, e fazia com que realmente aproveitassemos melhor a campanha, mesmo nas aventuras em que os deuses dos dados resolviam se revoltar.

Para quem tiver curiosidade (e paciência), estou compartilhando abaixo a história que escrevi para o personagem com o qual joguei por mais tempo (aproximadamente quatro anos em sessões esparsas de periodicidade mensal ou bimestral). Como disse antes, o mais importante não é o quão poderoso seu personagem começa, nem o quão formidável ele será se chegar a um nível elevado. O importante aqui é entender quem é seu personagem e o que ele passou antes de chegar ao primeiro nível. Assim, segue aqui a história de Richard Pendragon:

Richard nasceu em uma pequena vila de pastores, em uma região de clima frio e invernos bastante rigorosos. Durante sua infância, ficava fascinado sempre que um bardo visitava sua vila, o que acontecia uma ou duas vezes por mês, exceto nos invernos, quando absolutamente ninguém ia até lá. As histórias dos bardos sempre o fascinaram, e ele sonhava em crescer e se tornar algo "importante". 

O que exatamente dependia das histórias que o bardo que estava de passagem na ocasião contava; quando ouvia grandes sagas sobre poderosos guerreiros, Richard queria se tornar um grande lanceiro. Quando ouvia sobre os feitos assombrosos dos magos do sul, desejava fortemente ser treinado por um deles. Quando ouvia sobre os feitos audaciosos de grandes ladrões e espiões do leste, desejava ser um fora-da-lei. E, se uma semana depois, ouvisse as lendas de um nobre paladino, o garoto desejava ser escolhido por um Deus como seu representante e se tornar um bastião da justiça. Isto, claro, quando não ouvia as histórias que os bardos contavam em recintos mais "masculinos" sobre a quantidade exorbitante de belas donzelas com quem eles haviam se deitado; nestes momentos, Richard sentia que ele não era o único que desejava ser um grande bardo...

Na verdade, Richard nunca soube o que desejava ser quando crescesse; apenas o que nunca queria ser: Um sacerdote. "Chega de rebanhos", pensou o garoto, cujo pai era um pastor. "Tudo, menos isso", exclamava para si mesmo. Além do mais, as poucas histórias que os bardos contavam sobre clérigos e sacerdotes eram geralmente enfadonhas e monótonas; "Quem, em sã consciência, iria querer passar a vida levando a palavra de um Deus para um bando de tolos que só se lembram dos Deuses quando estão passando por fortes necessidades, ou quando querem muito alguma coisa?"

O caso é que, por vezes, não nos tornamos o que desejamos, mas sim, aquilo que o mundo precisa que nos tornemos.

Pouco após completar 15 invernos, Richard deixou sua vila com a benção de seus pais e com comida e dinheiro suficiente para mais de uma semana, contanto que fosse bem controlado. Durante dias, o rapaz vagou em direção ao sul, para chegar às grandes cidades e, talvez, encontrar seu destino. Contudo, no oitavo dia de viagem, uma forte tempestade caiu, e ele se viu obrigado a sair de sua trilha e buscar abrigo em uma fazenda próxima. Ao chegar lá, durante a noite, ficou horrorizado, ao ver homens, mulheres e crianças (provavelmente parentes) estirados no chão, com os corpos completamente destroçados por garras e presas. E, para sua surpresa, havia ali um homem velho, de longas barbas brancas, cavando covas para enterrar os pobres coitados, ignorando completamente a tempestade. O velho, que vestia um manto de viagem sujo e maltrapilho, olhou para Richard com seriedade quando o viu. O rapaz sentiu seu coração quase pular pela boca, e, de repente, ele também estava ignorando a tempestade. "E se foi ele que matou estas pessoas?" "Na dúvida, é melhor sumir daqui!". Contudo, algo em seu interior o deteve. E para seu próprio espanto, Richard foi em direção ao homem, e usando suas mãos e seu bastão de caminhada, começou a ajudá-lo a cavar.

A tempestade se agravou, mas Richard continuou cavando, mesmo sendo aparentemente ignorado pelo velho. Quando terminaram de cavar e enterrar os corpos, o velho se abaixou e fez uma pequena oração. Até hoje, Richard nunca soube o que realmente aconteceu naquele momento, mas assim que o velho proferiu sua última palavra, a tempestade repentinamente passou. "Como fez isto?" Richard perguntou. A única resposta que teve foi: "Eu nada fiz. Apenas pedi ao Senhor do Vento do Norte que levasse estas almas em paz e conforto para os planos celestiais".

O Senhor do Vento do Norte. Bahamut, Richard pensou imediatamente, lembrando-se do Deus para o qual sua família e todos os seus antepassados oravam. Controlando o impulso tolo de perguntar o óbvio, se aquele ancião servia Bahamut, Richard perguntou o que havia feito aquilo com aquelas pessoas. O velho exibiu um semblante ao mesmo tempo sério e triste, e respondeu que foram mortos-vivos, e acrescentou: "O lastimável, é que se houvesse nesta propriedade um único santuário dedicado aos Deuses da Luz, por menor que fosse, as criaturas não ousariam entrar aqui.""Mas porque os Deuses só protegem aqueles que os adoram?" Richard perguntou, indignado com aquela situação.

"Um guerreiro de bom coração que estivesse passando teria protegido todos aqui sem exigir nada em troca".O velho simplesmente balançou a cabeça e coçou a barba. "É por causa de idiotas como você que o mundo está deste jeito". "Bahamut, assim como todos os Deuses da Luz, não exigem adoração, e desejam proteger a todos. Contudo, ao contrário do seu guerreiro de bom coração, eles não podem estar aqui em corpo para nos defender. Eles podem apenas caminhar com aqueles que caminham com eles. E, em alguns casos, conferir poder para alguns poucos transmitirem sua sabedoria aos necessitados e poder para proteger os inocentes".

"Mas isso é o que um paladino faz" disse Richard em resposta, ainda refletindo sobre as palavras do velho. "Um paladino é um guerreiro sagrado, algo extremamente precioso", respondeu o velho. "Porém, tão importante quanto lutar contra o mal e a injustiça, é ensinar às pessoas como elas, por si próprias, podem se proteger e viver de forma melhor e mais dignaEnsiná-las como se proteger não apenas do mal que vem de fora, mas principalmente, daquele que vem de dentro de nossos corações."

Por um momento, Richard ficou atônito, como se estivesse finalmente entendendo o que o velho dissera sobre os Deuses só caminharem com aqueles que caminham com eles. "É isso que um clérigo faz?" Perguntou ele. "Sim", respondeu o velho simplesmente. "Você deseja aprender?" "Sim, eu desejo", respondeu Richard finalmente entendo qual o seu papel no mundo.Nos anos seguintes, Richard viajou com o velho ajudando todas as pessoas por onde passavam. O velho, para a total surpresa do rapaz, era um guerreiro formidável, e o ensinou a lutar e como enfrentar mortos-vivos, necromantes, demônios e fantasmas; ensinou sobre as criaturas mais poderosas dos planos celestiais e abissais, e como fortalecer o espírito para se manter firme e íntegro diante de qualquer coisa. Ensinou, principalmente, medicina e artes da cura antigas, da época dos primeiros druidas. Contudo, Richard se sentia inquieto porque o velho jamais falava sobre o dogma de Bahamut. Nem mesmo quando conversavam com as pessoas, ele explicava algo além de "Estejam com Bahamut em seus pensamentos e ações, e ele estará convosco na mesma proporção". E quando Richard questionava o velho sobre isto, tudo o que ouvia era "Não me faça perguntas idiotas".

No quinto ano de viagem, quando pararam para cuidar de pessoas gravemente feridas por um ataque feroz sofrido por saqueadores orcs, uma mulher perguntou a Richard o que Bahamut desejava das pessoas. Sem pensar, enquanto fazia o curativo na mulher, ele respondeu: "Que ajamos com sabedoria e benevolência, ajudando uns aos outros, sem jamais ceder para o mal, esteja ele fora ou dentro de nós". Neste instante, a mão de Richard começou a emitir uma tênue luz dourada, e o ferimento da mulher se fechou instantaneamente.

Observando aquilo, o velho apenas sorriu e disse: "Finalmente você entendeu. Não há dogma que possa ser memorizado e repetido. Há somente a Verdade, que pode apenas ser sentida conforme a percepção de cada pessoa". Richard sorriu e agradeceu o velho, que, se afastando das pessoas, se transformou em um grande dragão dourado. "Meu trabalho aqui está feito. Agora, o seu começará".

E assim foi feito. Nos anos seguintes, Richard viajou pelo mundo orientando, lutando e ajudando as pessoas a se protegerem do mal; esteja ele fora ou dentro de cada um.

Um comentário:

  1. Gronark, o Senhor de não prestar a atenção23 de agosto de 2023 às 12:33

    (Eu confundi os blogs enquanto escutava o vídeo do Diversity & Dragons, hahahahahaha)

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