Ao contrário do que muitos são
levados a acreditar nos dias de hoje, construir um personagem não é um processo
de combinar classes poderosas, acrescentar uma raça que confira bônus estratégicos
a essa combinação e selecionar meia dúzia de características aleatórias de um
background. Se o jogador se sente satisfeito com isso, não há problema, mas com
o tempo, os “combos invencíveis” irão acabar e inevitavelmente, esse processo
será cada vez mais enfadonho, até que todos gradativamente comecem a deixar o
hobby por falta de interesse.
No entanto, quando criamos nossos
personagens a partir de uma história, mesmo que curta, que conta como ele começou antes de ser o que é quando a campanha começa, damos
um significado real a ele. E com isso, a classe/raça do personagem passa a ser
definida não por fatores mecânicos, mas como forma de “dar vida” a um conceito
previamente criado. Nesse contexto, entendemos que a história do personagem não começa no
“nível 1”, mas muito antes disso. Quando escrevemos suas experiências antes de
efetivamente ter uma classe e propósito, criamos um vínculo com
esse personagem, e tudo o que se refere a ele passa a ser melhor aproveitado e
divertido por muito mais tempo.
Como era o mestre mais antigo de
meu grupo, eu raramente jogava, de modo que tive poucos personagens. Mas sempre
que tinha a oportunidade de jogar, procurava parar um pouco para escrever uma
história que explicasse como o personagem “chegou ao nível 1”, mesmo que isso parecesse supérfluo, e pedia o mesmo, em grau bem menor, a meus jogadores quando mestrava. Lembro que isso
nos aproximava dos personagens, e fazia com que realmente aproveitassemos melhor a
campanha, mesmo nas aventuras em que os deuses dos dados resolviam se revoltar.
Para quem tiver curiosidade (e
paciência), estou compartilhando abaixo a história que escrevi para o
personagem com o qual joguei por mais tempo (aproximadamente quatro anos em
sessões esparsas de periodicidade mensal ou bimestral). Como disse antes, o
mais importante não é o quão poderoso seu personagem começa, nem o quão
formidável ele será se chegar a um nível elevado. O importante aqui é entender
quem é seu personagem e o que ele passou antes de chegar ao primeiro nível.
Assim, segue aqui a história de Richard Pendragon:
Richard nasceu em uma pequena vila de pastores, em uma região de clima frio e invernos bastante rigorosos. Durante sua infância, ficava fascinado sempre que um bardo visitava sua vila, o que acontecia uma ou duas vezes por mês, exceto nos invernos, quando absolutamente ninguém ia até lá. As histórias dos bardos sempre o fascinaram, e ele sonhava em crescer e se tornar algo "importante".
O que exatamente dependia das
histórias que o bardo que estava de passagem na ocasião contava; quando ouvia
grandes sagas sobre poderosos guerreiros, Richard queria se tornar um grande
lanceiro. Quando ouvia sobre os feitos assombrosos dos magos do sul, desejava
fortemente ser treinado por um deles. Quando ouvia sobre os feitos audaciosos
de grandes ladrões e espiões do leste, desejava ser um fora-da-lei. E, se uma
semana depois, ouvisse as lendas de um nobre paladino, o garoto desejava ser
escolhido por um Deus como seu representante e se tornar um bastião da justiça.
Isto, claro, quando não ouvia as histórias que os bardos contavam em recintos
mais "masculinos" sobre a quantidade exorbitante de belas donzelas
com quem eles haviam se deitado; nestes momentos, Richard sentia que ele não
era o único que desejava ser um grande bardo...
Na verdade, Richard nunca soube o
que desejava ser quando crescesse; apenas o que nunca queria ser: Um sacerdote.
"Chega de rebanhos", pensou o
garoto, cujo pai era um pastor. "Tudo,
menos isso", exclamava para si mesmo. Além do mais, as poucas
histórias que os bardos contavam sobre clérigos e sacerdotes eram geralmente
enfadonhas e monótonas; "Quem, em sã
consciência, iria querer passar a vida levando a palavra de um Deus para um
bando de tolos que só se lembram dos Deuses quando estão passando por fortes
necessidades, ou quando querem muito alguma coisa?"
O caso é que, por vezes, não nos tornamos o que desejamos, mas sim, aquilo que
o mundo precisa que nos tornemos.
Pouco após completar 15 invernos,
Richard deixou sua vila com a benção de seus pais e com comida e dinheiro
suficiente para mais de uma semana, contanto que fosse bem controlado. Durante
dias, o rapaz vagou em direção ao sul, para chegar às grandes cidades e,
talvez, encontrar seu destino. Contudo, no oitavo dia de viagem, uma forte
tempestade caiu, e ele se viu obrigado a sair de sua trilha e buscar abrigo em
uma fazenda próxima. Ao chegar lá, durante a noite, ficou horrorizado, ao ver
homens, mulheres e crianças (provavelmente parentes) estirados no chão, com os
corpos completamente destroçados por garras e presas. E, para sua surpresa,
havia ali um homem velho, de longas barbas brancas, cavando covas para enterrar
os pobres coitados, ignorando completamente a tempestade. O velho, que vestia
um manto de viagem sujo e maltrapilho, olhou para Richard com seriedade quando
o viu. O rapaz sentiu seu coração quase pular pela boca, e, de repente, ele
também estava ignorando a tempestade. "E
se foi ele que matou estas pessoas?" "Na
dúvida, é melhor sumir daqui!". Contudo, algo em seu interior o
deteve. E para seu próprio espanto, Richard foi em direção ao homem, e usando
suas mãos e seu bastão de caminhada, começou a ajudá-lo a cavar.
A tempestade se agravou, mas Richard
continuou cavando, mesmo sendo aparentemente ignorado pelo velho. Quando
terminaram de cavar e enterrar os corpos, o velho se abaixou e fez uma pequena
oração. Até hoje, Richard nunca soube o que realmente aconteceu naquele
momento, mas assim que o velho proferiu sua última palavra, a tempestade
repentinamente passou. "Como fez isto?"
Richard perguntou. A única resposta que teve foi: "Eu
nada fiz. Apenas pedi ao Senhor do Vento do Norte que levasse estas almas em
paz e conforto para os planos celestiais".
O Senhor do Vento do Norte. Bahamut,
Richard pensou imediatamente, lembrando-se do Deus para o qual sua família e
todos os seus antepassados oravam. Controlando o impulso tolo de perguntar o
óbvio, se aquele ancião servia Bahamut, Richard perguntou o que havia feito
aquilo com aquelas pessoas. O velho exibiu um semblante ao mesmo tempo sério e
triste, e respondeu que foram mortos-vivos, e acrescentou: "O lastimável, é que se houvesse nesta
propriedade um único santuário dedicado aos Deuses da Luz, por menor que fosse,
as criaturas não ousariam entrar aqui.""Mas
porque os Deuses só protegem aqueles que os adoram?" Richard perguntou,
indignado com aquela situação.
"Um
guerreiro de bom coração que estivesse passando teria protegido todos aqui sem
exigir nada em troca".O velho simplesmente balançou a cabeça e coçou a
barba. "É por causa de idiotas como você
que o mundo está deste jeito". "Bahamut,
assim como todos os Deuses da Luz, não exigem adoração, e desejam proteger a
todos. Contudo, ao contrário do seu guerreiro de bom coração, eles não podem
estar aqui em corpo para nos defender. Eles podem apenas caminhar com aqueles
que caminham com eles. E, em alguns casos, conferir poder para alguns poucos
transmitirem sua sabedoria aos necessitados e poder para proteger os inocentes".
"Mas
isso é o que um paladino faz" disse Richard em resposta, ainda
refletindo sobre as palavras do velho. "Um
paladino é um guerreiro sagrado, algo extremamente precioso",
respondeu o velho. "Porém, tão
importante quanto lutar contra o mal e a injustiça, é ensinar às pessoas como
elas, por si próprias, podem se proteger e viver de forma melhor e mais digna. Ensiná-las como se proteger não apenas do mal
que vem de fora, mas principalmente, daquele que vem de dentro de nossos
corações."
Por um momento, Richard ficou
atônito, como se estivesse finalmente entendendo o que o velho dissera sobre os
Deuses só caminharem com aqueles que caminham com eles. "É isso que um clérigo faz?" Perguntou
ele. "Sim", respondeu o velho
simplesmente. "Você deseja aprender?"
"Sim, eu desejo", respondeu
Richard finalmente entendo qual o seu papel no mundo.Nos anos seguintes,
Richard viajou com o velho ajudando todas as pessoas por onde passavam. O
velho, para a total surpresa do rapaz, era um guerreiro formidável, e o ensinou
a lutar e como enfrentar mortos-vivos, necromantes, demônios e fantasmas;
ensinou sobre as criaturas mais poderosas dos planos celestiais e abissais, e
como fortalecer o espírito para se manter firme e íntegro diante de qualquer
coisa. Ensinou, principalmente, medicina e artes da cura antigas, da época dos
primeiros druidas. Contudo, Richard se sentia inquieto porque o velho jamais
falava sobre o dogma de Bahamut. Nem mesmo quando conversavam com as pessoas,
ele explicava algo além de "Estejam com
Bahamut em seus pensamentos e ações, e ele estará convosco na mesma proporção".
E quando Richard questionava o velho sobre isto, tudo o que ouvia era "Não me faça perguntas idiotas".
No quinto ano de viagem, quando
pararam para cuidar de pessoas gravemente feridas por um ataque feroz sofrido
por saqueadores orcs, uma mulher perguntou a Richard o que Bahamut desejava das
pessoas. Sem pensar, enquanto fazia o curativo na mulher, ele respondeu: "Que ajamos com sabedoria e benevolência,
ajudando uns aos outros, sem jamais ceder para o mal, esteja ele fora ou dentro
de nós". Neste instante, a mão de Richard começou a emitir uma tênue
luz dourada, e o ferimento da mulher se fechou instantaneamente.
Observando aquilo, o velho apenas
sorriu e disse: "Finalmente você
entendeu. Não há dogma que possa ser memorizado e repetido. Há somente a
Verdade, que pode apenas ser sentida conforme a percepção de cada pessoa".
Richard sorriu e agradeceu o velho, que, se afastando das pessoas, se
transformou em um grande dragão dourado. "Meu
trabalho aqui está feito. Agora, o seu começará".
E assim foi feito. Nos anos seguintes, Richard viajou pelo mundo orientando, lutando e ajudando as pessoas a se protegerem do mal; esteja ele fora ou dentro de cada um.

(Eu confundi os blogs enquanto escutava o vídeo do Diversity & Dragons, hahahahahaha)
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