Saudações, nobres heróis!Há algum tempo, tivemos uma discussão sobre paladinos e seus códigos de ética e conduta. Movido por esta discussão, escrevi a história de Tristan Anaron, um dos maiores paladinos do mundo de Elgalor, como uma forma de contribuir um pouco com o debate.
PARTE I
Nasci em uma pequena
vila no interior de Eredhon, um local calmo e bastante tranqüilo. Minha mãe era
uma herbalista, que com seus conhecimentos, mantinha as pessoas saudáveis e,
sempre que necessário, curava os enfermos que surgiam. Meu pai era um cavaleiro
veterano da Ordem dos Cavaleiros do Céu, e com sua espada e sangue, ajudava a
manter nossas terras seguras e nosso povo a salvo.
Quando eu tinha nove
anos, minha mãe foi acometida por uma forte febre enquanto tratava uma estranha
doença que havia surgido por conta de uma forasteira que passou um dia em nossa
vila e morreu logo em seguida. A doença se alastrou e atingiu quase todas as
mulheres da vila, mas minha mãe foi capaz de curar todas elas, e por conta
disso, nenhuma criança dali precisou crescer sem mãe. Contudo, ela também
estava doente, e não havia mais ervas medicinais ou tempo para conseguir novas.
Assim, minha mãe faleceu dois dias depois de curar a última enferma.
Aos meus doze anos, um
culto de demonologistas conjurou um terrível demônio e o lançou em um pequeno
povoado por motivos desconhecidos. Meu pai e seus homens interceptaram a
criatura, mas ela não podia ser derrotada, ao menos não por eles. Assim, ele
ordenou a seus homens que organizassem a evacuação da vila e deu sua vida para
segurar o demônio até que os clérigos do rei chegassem. Por causa do sacrifício
dele, muitas pessoas ali não precisaram crescer sem pai.
Os dons de meu pai e
minha mãe permitiram que muitos passassem mais tempo com seus entes queridos, e
nenhum de seus grandes feitos passou despercebido. Contudo, as honras e as belas histórias dos bardos não
mudavam o fato de que eu havia perdido meus pais, e ao contrário de tantos, eu
precisei crescer sem pai ou mãe. E isto me deixou furioso. Por muito tempo.
Pouco depois da morte
de meu pai, passei a morar com a viúva de um de seus melhores amigos, que havia
tombado em combate poucos meses antes. Ela era uma mulher bondosa e forte, e
para minha sorte, tinha um filho de sete anos que em pouco tempo, se tornaria o
irmão que eu nunca havia tido. Passei os próximos quatro anos com eles, e
admito, sem nenhuma reserva, que se não fosse o amor e compreensão que ambos me
deram naquele período, eu não seria o homem que sou hoje, e provavelmente,
teria me afundado em minha dor egoísta.
Egoísta porque, como
minha nova família me mostrou, muitos foram os que cresceram sem seus pais, mesmo
em Eredhon, o reino mais ordeiro e pacífico de toda Elgalor. Quando ouvia as
histórias tristes de minha nova mãe sobre acontecimentos que ela presenciou em outras
terras, fiquei ao mesmo tempo envergonhado e horrorizado; havia muito
sofrimento no mundo. Muitas pessoas boas e inocentes pagando sem ter culpa
nenhuma de nada. Muitos heróis anônimos, como meus pais, que davam suas vidas e
sofriam para que outros não precisassem sofrer.
Pouco após meu décimo
sexto aniversário, decidi me alistar no exército real. Eu já havia recebido
algum treinamento de meu falecido pai, e como nomes e principalmente feitos são
extremamente valorizados em Eredhon, eu não teria problema para conseguir uma
recomendação, que me permitiria ao menos tentar mostrar meu valor. Meu jovem
irmão, Athelstan, aos onze anos de idade, decidiu que se tornaria um clérigo, e
dado seu caráter e compaixão, eu sabia que ele um dia seria um dos maiores clérigos
que Elgalor jamais vira. Assim, me despedindo de minha nova família, que não
apenas me deu abrigo, mas salvou minha alma, rumei para a capital com a espada
de meu pai, algumas moedas e um velho cavalo.
Ao longo da viagem,
tive um sonho constante com um homem velho, porém altivo, que caminhava
pacientemente pelas planícies carregando um cajado e uma gaiola de ferro, que
continha doze pequenos canários. Ele olhava para mim de forma séria, e parava
frente a uma grande rocha. Como todo habitante de Eredhon, sabia que aquela era
a representação mortal de Bahamut, o Senhor do Vento do Norte, e um dos deuses
mais cultuados no reino depois de Heironeous, nosso patrono. Obviamente, fiquei
fascinado com o sonho, mas o ignorei. O que não sabia, é que teria o mesmo sonho
durante os próximos doze dias de viagem.
Contudo, o que mais me
chocou foi que, ao chegar perto da capital, passei por uma planície idêntica
àquela do sonho. E como se isso não bastasse, deparei com uma grande rocha no
meio do caminho. Atônito, comecei a temer que o velho aparecesse do nada, como
um fantasma, me atribuindo algum poder e me atribuindo uma importante
responsabilidade que mudaria totalmente meu destino, como sempre acontecia nas
lendas. Contudo, nada aconteceu de imediato, e como eu não queria “abusar da
sorte”, corri para frente e segui meu caminho. Daquele dia em diante, os sonhos
pararam completamente.
PARTE
II
Cinco anos se passaram.
Por ser o único filho de Uther Anaron, fui muito bem recebido quando me
apresentei ao comando do exército na capital. Eu não possuía nenhum talento
especial ou digno de nota com a espada ou a lança, mas por causa de meu esforço
e desejo sincero de fazer algum bem, atingi o posto de soldado relativamente
rápido. Além disso, me revelei um bom estrategista, e meus comandantes
frequentemente diziam que eu passava calma e confiança aos soldados. Por várias
vezes, me foram oferecidas patentes de comando, e com educação, sempre as
recusei. Nunca desejei o poder ou a responsabilidade esmagadora que ele impõe
sobre os ombros daqueles que o detém. Jamais desejei o fardo da liderança, da
responsabilidade de ter a vida de vários irmãos de armas em suas mãos, sabendo
que uma má decisão sua poderia culminar na morte de dezenas, centenas ou até
milhares de pessoas.
Contudo, minha implacável
recusa em assumir grandes responsabilidades nunca se deu por conta de um desejo
egoísta de liberdade, traço pelo qual elfos e anões geralmente criticam muito
nós, humanos. Eu sempre tive o desejo de servir a uma causa maior. Servir até o
fim de meus dias, seguindo comandantes dignos até as profundezas do inferno se
necessário fosse. Mas a liderança era uma responsabilidade que eu veementemente
me recusava a assumir. Assim, mesmo sem jamais liderar oficialmente um único
destacamento, ao final de meu quinto ano no exército real fui condecorado com
um posto entre os Cavaleiros do Céu. Contudo, a imagem da grande pedra de cinco
anos atrás ocasionalmente me assombrava. Como um lembrete de que eu estava
fazendo menos do que podia. Pior, que eu estava fazendo menos que deveria.
Mais quatro anos se
passaram, anos em que Eredhon enfrentou uma imensa invasão orc, já que um
poderoso bárbaro deste povo uniu mais de dez tribos rivais e, por alguma razão,
decidiu que faria seu “reino” em Eredhon. Foram anos tumultuados, que mesmo
constantemente me esquivando de posições formais ou informais de comando, não pude
escapar da sensação de culpa cada vez que compareceia ao enterro de um colega
ou amigo de tropa. Evento que, infelizmente, estava acontecendo com uma freqüência
cada vez maior. Porém, o pior ainda estava por vir, e eu aprendi, da pior forma
possível, aquilo que os velhos sábios diziam: “Aquele que foge de seus medos,
na verdade, está correndo em direção a eles”.
Nosso destacamento
precisou se dividir em duas unidades em um período muito curto de tempo para
proteger duas cidades distintas que seriam massacradas por hordas de orcs,
goblins e ogros. Meu comandante me apontou como capitão do meu destacamento e
eu recusei, afirmando que um de meus colegas, Byron Dartaron, por ser mais
velho e experiente, deveria assumir a liderança. A contragosto, meu comandante
aceitou, e Dartaron aceitou a promoção de bom grado.
Estávamos em sessenta
cavaleiros, e a força dos orcs ultrapassava em pouco nosso número. Seria uma
batalha difícil, mas se lutássemos bem, obteríamos a vitória. Contudo, logo no
início, Dartaron se precipitou e cometeu um erro estratégico potencialmente
grave na maneira como ordenou que as tropas avançassem. Os orcs, como
guerreiros experientes, perceberam o erro e o exploraram. Dolorosamente.
Em pouco mais de cinco
minutos de combate, nossa força foi reduzida a menos de trinta homens, e
naquele momento, havia quase dois orcs para cada cavaleiro. Além disso, Dartaron
foi abatido pelo líder orc e nossas formações já precárias começavam a
desmoronar completamente. Rangi os dentes de ódio ao notar que tudo aquilo era
minha culpa. Se eu tivesse aceitado o comando da unidade, as coisas não teriam
chegado àquele ponto. Em minha hesitação em assumir o comando e ser responsável
pela morte de meus companheiros, ironicamente condenei dois terços de nosso
batalhão à morte. E talvez, eu tenha condenado não apenas o restante dos homens
que lutavam desesperadamente, mas também todos na cidade que dependiam de nossa
proteção.
Enquanto lutava com
toda minha força, não apenas contra os orcs, mas contra minha própria culpa,
notei que havia criado uma situação que não permitia sequer que eu me sacrificasse
pelos demais, como meu pai fez anos atrás, porque não havia um único ser de
grande poder a ser atrasado, mas cinqüenta bestas sanguinárias que não parariam
por nada. Sem alternativas, continuei lutando, esperando levar comigo o máximo
de orcs que pudesse antes de morrer, lembrando que cada um que caísse perante
minha espada seria um a menos para chacinar o povo da cidade. Quase que
inconscientemente, pedi aos Deuses por ajuda e perdão.
Para minha surpresa, no
instante seguinte vi novamente a imagem daquela fatídica pedra em minha mente por
uma fração de segundo, e uma mensagem ecoou dentro de mim: “Pare de fugir”. Neste
instante, notei que uma lágrima deixou um de meus olhos e senti uma breve,
porém intensa paz. Entre um bloqueio com meu escudo e um golpe de minha espada,
me acalmei e comecei a gritar ordens aos cavaleiros sobreviventes. Eles se
organizaram e acataram meus comandos instantaneamente, e só então pude perceber
que desde o início do combate, eles estavam esperando que eu lhes conduzisse
naquela maré de sangue, metal e entranhas.
Não me lembro quanto
tempo passou, mas o fato é que quando saímos do frenesi da batalha, havia
quinze de nós ainda de pé. Os orcs haviam morrido ou debandado, e o que teria
sido uma derrota catastrófica tornou-se um pequeno triunfo. Passei o resto do
dia ajudando a cuidar dos feridos e dando um enterro digno aos nobres
guerreiros que tombaram ali. Passado o perigo, o povo da cidade começou a vir
para nos ajudar e nos agradecer, e notei que ver aquelas pessoas bem,
especialmente suas crianças, revigorou completamente o coração de todos os
soldados que ainda estavam vivos. No fim, aquilo tudo não havia sido em vão.
Cumpridas estas responsabilidades,
fiz o relatório ao meu comandante, que apesar de lamentar nossas imensas
baixas, se mostrou grato por termos obtido certo êxito. Novamente, ele me
ofereceu o posto de capitão, e desta vez, eu aceitei. Não tinha vontade alguma
de fazê-lo, e continuava não desejando assumir a liderança de nada. Contudo,
quando a necessidade surgisse, eu não viraria mais as costas, porque entendi
que, por mais que isto me desagradasse, os Deuses determinaram que liderar era minha
forma de servir. Agora, só faltava uma coisa a ser feita.
PARTE
III
Após dois dias de
viagem a cavalo, voltei àquela pedra, que encontrei há quase dez anos.
Desmontei e, ao ver o local, comecei a me lembrar do início de minha jornada,
apenas para ser subitamente despertado pelo canto de vários canários, e por uma
voz grave e forte.
“Estás atrasado, Tristan. Muito atrasado”.
Olhei em direção à voz
e notei que o mesmo velho do sonho, vestindo um manto surrado e carregando a
gaiola com doze canários, estava a três metros de mim. Seus olhos prateados me
fitavam com uma mistura de compreensão e imponência, e me senti como uma criança
perto de um adulto severo, mas protetor.
- Peço desculpas. Eu
precisava entender algo, e infelizmente, demorei tempo demais para isto. Mas
garanto que...
“E o que aprendestes?”, ele perguntou me fitando da mesma forma de antes, sem deixar que
eu terminasse.
- Que nós podemos fugir
de nossos destinos, mas que não devemos fazê-lo. Que, gostemos ou não, há um
papel para cada um de nós, e que quando viramos as costas para ele, colocamos os
fardos com nossos nomes nos ombros de outros, e isto, cedo ou tarde, trará
problemas a todos ao nosso redor.
O velho deu um leve
aceno com a cabeça e falou:
“O universo pede mais daqueles que podem oferecer mais. Seguir teu
destino não lhe trará infelicidade, Tristan Anaron, mas teu fardo, como o de
todos os que são escolhidos para levar luz e justiça ao mundo, não será leve. Estais
disposto a assumi-lo, a se tornar um de meus paladinos?”
- Sim, estou – respondi
me apoiando em um só joelho à frente dele.
Um forte clarão se fez,
e de uma forma inexplicável, senti que parte da luz do universo estava dentro
de mim daquele momento em diante. Compreendi instintivamente que aquela luz, na
verdade, sempre esteve ali. Por conseqüência, compreendi também que um de meus
deveres era fazer com que outras pessoas, cada uma à sua forma e a seu tempo,
encontrassem esta mesma luz dentro de si mesmos.
Assim, me tornei um
paladino, e os próximos dez anos de minha vida foram repletos de escolhas
difíceis e batalhas terríveis, mas também de algumas poucas, porém imensas alegrias.
Apesar de constantemente estar lutando à frente de homens e mulheres que, ao
meu ver, muitas vezes eram mais valorosos do que eu jamais serei, encontrei Elenna
Aldalen, uma mulher nobre e valente, que me acompanhou durante os momentos mais
difíceis de minha vida e que não só me concedeu a honra de ter sua mão como
também me deu duas crianças: A pequena Leneth e o jovem Uther.
Apesar de minha fé, não
posso negar que quando entro em um campo de batalha, me preocupo que Leneth e
Uther possam, por um capricho do destino, precisar crescer sem pai. Isto,
contudo, dá forças ao meu espírito para lutar como nunca, porque agora, mais do
que em qualquer momento em minha vida, sei que preciso voltar para casa. Que
quero voltar. Além disso, sei também que enquanto eu estiver servindo, muitas
crianças não precisarão enterrar os próprios pais como eu fiz com os meus. Por
isso, nunca deixarei de lutar.
Nunca deixarei de
servir.
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